15 de agosto de 2010

Cadela Preta, por Jaime Nudilemon Chatkin*


Cadela Preta. Cachorro de rua, cachorro negro, animal-fêmea. Dependente da bondade de estranhos, como o famoso personagem da dramaturgia, acabou padecendo pela maldade de estranhos seres racionais, arrastada pelos paralelepípedos cortantes e contundentes de ruas barbarizadas, com os filhotes no ventre, até a morte.


A violência covarde que a vitimou não é muito diferente da que habitualmente se comete contra outros seres sensíveis e inofensivos numa sociedade em que animais praticamente recém-nascidos já se encaminham às brasas, em que a vida dos outros vale pouco ou quase nada, exceto para os que lucram muito com elas. Milhões de palavras não seriam suficientes para descrever a existência sem amor, sem lar, sem compaixão, sem perdão e sem redenção que acomete bilhões dos nossos companheiros de jornada neste planeta, dia após dia, a cada momento. As informações a respeito são facilmente acessíveis, a dois “cliques” de distância de qualquer um que queira se importar. Talvez sirva de atenuante aos algozes da Preta tal fato, de terem suas mentes forjadas em uma cultura que enaltece as coisas feitas como sempre foram e se assusta com a mudança e repele a novidade, num comodismo egoísta que empurra lenta e cruelmente para o futuro uma avaliação ética mais ampla do nosso comportamento para com os semelhantes, humanos e não humanos.

Todo o volume de papel dos processos, das correspondências, dos jornais, das sentenças, não trarão Preta de volta à sua vida pacata, e sua calidez ingênua foi retirada para sempre da selva de pedra em que vivemos.

Mas uma coisa deveria ficar clara nesta história que aos poucos vai chegando ao fim. A punição dos culpados era uma causa sem dúvida nobre para o Ministério Público; o efeito pedagógico gerado tem importância indiscutível; o aperfeiçoamento moral de pessoas e comunidades envolvidas também não pode ser esquecido. Porém, acima de tudo, que fique registrado nos anais dos acontecimentos que a Promotoria de Justiça de Pelotas agiu em nome da própria Cadela Preta, e não apenas por fundamentos emocionais, mas porque o Direito Positivo Brasileiro – o conjunto de leis que deve reger uma sociedade civilizada – preceitua há muito tempo que o Estado é o tutor de todos os animais. Fica a esperança de que o poder desta tutela mude e se fortaleça com o passar do tempo, na medida em que igualmente mudem e se fortaleçam nossos sentimentos compassivos. E, assim, o sofrimento de Preta não terá sido em vão.

Jaime Nudilemon Chatkin
*Promotor de Justiça de Defesa Comunitária de Pelotas

Fonte: Jornal Zero Hora

Um comentário:

Renatinhang disse...

Triste, a humanidade parece cada dia pior, + são pessoas como esta que escreve este texto que me fazer crer que ainda vale a pena LUTAR...